Em seus dedos dançavam a coluna de luz que se propagava na escuridão da noite, a única luz capaz de cortar aquele manto expeço entre as árvores. De noite era mais como se os troncos grossos e curtos tivessem se tornado mais sombrios e a terra úmida e fofa se liquefizesse por completo tornando a imagem em um pântano de confusão, medo e dor diluído no ar. Era só um jogo das partes da mente que se podia se enganar. No alto só se podia ver a lua por pequenas falhas na folhagem. Era como se noite cheirasse à morte e chamasse a tristeza.
Ele desligou a lanterna e fechou o livro que lia. As folhas, cheias de tinta, impressas em uma maquina em algum lugar que não importava mais estavam molhadas pelas gotas salgadas das lagrimas que percorriam aquele rosto jovem. Elas, as lágrimas, desciam pela sua pele deslizando e a cada milímetro que se locomoviam puxadas pela gravidade faziam a aura de seu corpo pesar, como se a mesma gravidade das gotas exercesse uma força muito maior nos músculos. Ali, em meio a pouca luz que conseguia ultrapassar a relva, puxou outro conjunto de folhas, porém essas não marcadas pela tinta. Outros olhos não poderiam enxergar as letras que novamente os dedos dançantes construíam, mas esses os viam com perfeição. Era uma história, um conto, o último, quem sabe?
A cada palavra, seu coração pesava como as nuvens que deslizavam sobre o chão e a folhagem morta já caída ao chão em função do tempo. A escuridão ia tomando conta de seu coração e ele tentava expurgá-la para fora por intermédio de suas palavras, mas ela não queria sair. Talvez fosse parte da luta eterna que o coração trava dentro de si entre o consciente do sofrimento e o inconsciente da felicidade, sempre em busca de um equilíbrio que nunca se é encontrado. As palavras acabaram e as folhas haviam se terminado. Estava pronta mais uma obra que deixaria a cicatriz do tempo não somente exposta em sua pele para quem vice com os olhos, mas também as do coração visíveis somente para quem é fardado pelo destino a ver e sofrer. Aquelas palavras significavam algo cujo significado ele não conseguia decifrar mais, pois tudo o que queria dizer ainda estava dentro dele. Temia que suas palavras não fossem o suficiente para expor tudo aquilo que o aprisionava por dentro.
Escondeu com as mãos o rosto, como as crianças que choram em frente a todos, mas ainda assim se escondem atrás da parede indestrutível de suas mãos. Era na tentativa de conter a dor e as lágrimas, mas não conseguiria. As folhas à sua frente – molhadas por aquelas gotas de tristeza – o perturbavam. Levantou-se e gritou, gritou tão alto e fundo que a própria noite o olhou, com pena. Amassou as folhas e deixou com que elas deslizassem pelo ar e tocassem a terra. Estranhamente, elas estavam em frente ao pequeno encosto de pedra a qual ele havia se apoiado. Ele se ajoelhou sem conseguir sentir mais seu corpo, a gravidade havia se extinguido. Ele tocou as letras da lápide a sua frente lentamente com a alma em desespero. Por minutos, parado ficou com a mão sobreposta à lápide apenas olhando.
Os únicos movimentos viam de seus olhos que piscavam a cada vez que uma gota a mais desabrochava e se desprendia de sua pele, se perdendo no ar escuro da noite, levando junto a si cada sopro de vida que lhe restava entre suas células. Sua imagem desaparecia junto à noite, suas células e músculos deixavam com que a quase nula luza do luar atravessassem sua essência. Enquanto os últimos minutos da noite iam se definhando pelo tempo, o corpo sólido do rapaz que passara a noite a escrever e chorar ia perdendo a sua imagem, até a noite encontrar seu fim a luz do sol que tocou o resquício de cores que ainda possuía e tomou por completo sua solidez, transformada em nada que se pudesse perceber com os glóbulos oculares do corpo.
O calor do sol ainda era inexistente no início da manhã da manhã turva e com cheiro de terra molhada. A neblina que havia encoberto tudo que se podia encontrar próximo ao cemitério ainda estava presente e mais expeça a cada segundo. Por isso, a única percepção possível talvez fosse a dos distantes passos delicados, porem melancólicos de quem caminhava em direção a alguma lápide. Cortando as moléculas de água suspensas no ar, com seus cabelos castanhos claros e a fisionomia da morte - morte está que atinge indiretamente por outro, destruindo as partes de quem a pessoa mais se orgulha, os sentimentos ao qual mais se procura preservar. Ela chorava, mas procurava manter seus olhos encobertos pelos óculos escuros que permaneciam discretos usados em conjunto ao negro das roupas que ela vestia.
Nas mãos as flores negras e brancas se misturavam em um buque fúnebre que fora colocado com carinho em frente à lápide que sinalizava onde o seu coração havia sido sepultado. Os joelhos delicados tocaram a terra fofa ao mesmo tempo em que, do céu, as gotas caíram fortes e grossas molhando-a e a tudo com a frieza e tristeza que apenas as chuvas dos cemitérios podem carregar. As mãos alisaram a pedra da lápide onde as letras se formavam e com a boca seguiu as escrituras proferindo as frases que ganham sentido apenas após a visita inquietante da morte.
-Porque em pessoas como ele que foi em quem Deus lançou a maldição de amar. Aqui jaz quem com a alma escrevia.
A última lágrima caiu e se confundiu com a chuva. A amada se levantou do tumulo de quem amou e deu as costas. Preferiu olhar para o chão, com medo de olhar para frente e não vê-lo sorridente ali, pronto para abraçá-la e beijá-la. As pernas agora se encontravam presas pela gravidade que impede com sua força inconstante o ser de se movimentar quando mais precisa fugir de sua melancolia. Percebeu as folhas que roçavam em seus pés pedindo-lhe atenção. Ela as pegou molhadas e as juntou, formando o conjunto branco e ligeiramente grosso de papeis escritos pelas mãos cuidadosas de quem escreve. Ela simplesmente se sentou, apoiando-se na lápide, e passou a ler. Lia, lia e sorria, sorria e chorava, chorava e pronunciava as palavras que formavam frases, que formavam parágrafos que formavam aquela ultima história que no fim dizia que por mais que não queiramos, existem coisas que precisamos deixar ir, porém sempre haverá algo que permanecerá em nós de alguma forma, forma essa que nem o tempo pode dissipar.
-Você sempre me foi o suficiente. Nunca houve o que temer.
Por Pedro Nunes Rodrigues